Gilsandra Pereira tem hoje 58 anos e ainda vive com dois netos no pequeno apartamento do Residencial Flores da Amazônia, em um dos blocos do conjunto habitacional. Ex-empregada doméstica, Gilsandra vive com recursos de programas sociais do governo.
Subir pelas escadas carregando sua bicicleta, meio de transporte que tanto já usou, já é algo bem difícil de fazer. “Já aconteceu de eu cair e rolar com bicicleta e tudo pela escada”, declarou.
São quatro lances no bloco C até o pequeno apartamento, que conta com uma sala, dois quartos e um banheiro.
Logo após abrir a porta, um pequeno espaço conjugado com a cozinha surge. Na lateral uma geladeira ao lado de uma mesa de plástico com algumas cadeiras em volta. Um móvel antigo como aparador segue pela outra lateral da sala, com uma televisão de tubo em meio a várias fotografias.
Ali estão fotos das filhas Sione e Simone, fotos de alguns parentes e por fim um quadro maior com uma grande imagem da pequena Laura Vitória emoldurada, usando um vestido vermelho e segurando guarda-chuva e a inscrição: “Com Amor e Carinho”.
Em outra parede da sala, um segundo quadro emoldurado – também de Laura Vitória - compõe o ambiente. Trata-se do seu diploma de formatura do Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) Cantiga de Ninar. A pequena Laura havia concluído a educação básica no ano de 2012.
Nesta foto do diploma, ela aparece vestindo beca e chapéu vermelho com a inscrição “ABC” na roupa.
Um caderno de Laura usado na escola virou uma das melhores recordações da menina, informou a avó. Neste caderno, estão mensagens sobre amor para um coleguinha chamado Kailam, poemas e recordações com as demais amigas no dia-a-dia da escola.
Neste mesmo caderno, também haviam recortes de reportagens sobre Laura, algumas escritas por este autor e coladas na época em que foram veiculadas.
Também constavam boletins da Escola Municipal Estevão Castro do 3º ano do Ensino Fundamental com datas de 2015, um ano antes de Laura desaparecer.
A menina tinha nota acima de oito em várias disciplinas, sendo muito aplicada e com destaque em Ciências Sociais e Língua Portuguesa.
Do interior do Maranhão
Nascida na cidade de Mirador - 500 km da capital São Luís - no estado do Maranhão, Gilsandra é de uma família simples. Seu pai, João Carlos Oliveira, era lavrador, enquanto sua mãe, Nezita Pereira, lavadeira de roupas.
Sem ter iniciado os estudos, Gilsandra não chegou a aprender a ler e escrever. Com outros 15 irmãos, a família sempre teve de lidar com a escassez e a luta diária em uma realidade muito pobre. “Passamos muita dificuldade para chegar aqui, não tínhamos nada”, comentou.
A jornada até o então estado de Goiás foi uma verdadeira prova. Enfrentou a fome e inúmeros desafios até chegar na cidade de Axixá, localizada na região norte do estado, sendo parte da famosa região do Bico do Papagaio - um conglomerado de pequenos municípios com grandes conflitos políticos, sociais e ambientais.
Segundo Gilsandra, seu avô por parte de mãe foi um dos que participaram da fundação do estado do Tocantins. Juntamente com outras centenas e centenas de trabalhadores, foram vários os que migraram de estados como o Pará e Maranhão em busca de oportunidades no recém criado Tocantins.
Foi na pequena Axixá (hoje com 12,8 mil habitantes) que ela criou suas duas filhas: Simone Pereira (1986), sendo a mais velha - e Sione Pereira (1988), esta mãe de Laura Vitória Oliveira da Rocha.
Os primeiros anos de Palmas
Em 1993, cinco anos após a criação do estado do Tocantins, Gilsandra mudou-se para a capital com as filhas ainda muito pequenas. Buscando melhores condições e ofertas de trabalho, encontrou o sustento como doméstica na cidade, percorrendo as avenidas e alamedas com sua bicicleta.
Neste tempo, relatou que as meninas ficavam em casa. “As duas deram muito pouco trabalho quando crianças. Sione era muito boa dentro de casa, sempre gostava de todo mundo e de dançar. Elas participavam de um clube de dança daqui. Na época tinham cerca de 12 anos”.
No final da década de 90, Gilsandra trabalhava com serviços gerais em um antigo parque aquático de Palmas, localizado na rodovia TO-050. Nessa época, ela morava com as meninas na região norte de Palmas.
A rotina começava com a saída de casa por volta das 15 horas da tarde e retorno às 03 horas da madrugada. As meninas iam para a escola e ao retornar, ficavam em casa sozinhas, conforme relatou.
“Eu deixava tudo pronto. Quando chegava ia lavar roupa até o amanhecer do dia, ia limpar a casa, arrumar tudo, fazer almoço, deitava um pouco e deixava as meninas no colégio. Depois descansava e o dia começava de novo”.
Uma jornada pelas delegacias de Palmas
Gilsandra foi a pessoa que mais batalhou e dedicou esforços, ainda que limitados pelas condições da vida, em busca de sua neta Laura Vitória. Para tentar tornar isso possível, somou aos esforços orações e jornadas pelas delegacias da cidade.
Sem saber ler ou escrever, enfrentou as dificuldades da idade em busca da menina, questionando sobre o caso para agentes e delegados com quem encontrava. A resposta, segundo ela, era sempre a mesma: “estamos investigando”.
Foram algumas poucas semanas após o desaparecimento da menina, que este jornalista que escreve conheceu Gilsandra. O primeiro encontro foi em fevereiro daquele ano, no mesmo apartamento em que concedeu a nova entrevista em 2023.
Ainda naquela época, eu havia sido o primeiro jornalista a ir aonde Laura morava. Em um dos quartos do pequeno apartamento onde a menina dormia, tudo estava conforme havia deixado, junto com fotografias e roupas que ela usava. Uma foto, tirada por mim, estampou a página interna de uma reportagem de capa do jornal em que trabalhava na época.
De lá para cá, foram muitas mensagens e telefonemas trocados ao longo dos anos, sempre com ela me perguntando sobre a investigação. Infelizmente, quase nada surgiu de novo sobre o caso. No máximo, movimentações do inquérito indo de uma delegacia para outra.
É a Avó de Laura
Na entrevista concedida em maio deste ano (2023), Gilsandra brincou que é conhecida como “A avó da Laura”. Um pouco triste, compartilhou como é vista, até os dias de hoje - como a avó da garota que desapareceu.
Em 2017, ainda no luto do desaparecimento da neta, Gilsandra enfrentou outro duro golpe: o assassinato de Sione, a mãe de Laura .
No intervalo de um ano e oito meses, ela perdeu a neta (desaparecida) e a filha - vítima de um assassinato cometido por um servidor público que atua – ainda hoje - no sistema prisional tocantinense.
Todo o desenrolar desta segunda tragédia será retratado na parte seguinte.
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