Após o aprofundamento em todas as fases do caso Laura nos seis capítulos da seção anterior e um histórico sobre seus familiares, começa agora a sexta parte deste trabalho, com dados que retratam a realidade sobre casos de desaparecimento de crianças e adolescentes no Tocantins e Brasil.
Desde que estas informações começaram a ser tratadas de forma mais sistêmica no país, a partir de 2007, tornou-se possível ampliar a visão sobre o tema. Nos primeiros dez anos do levantamento de desaparecdos, foram mais de 693.076 boletins de ocorrência registrados no país.
A seção “Eu vi o que eles estão falando” retrata também as dificuldades de um país continental como o Brasil em tratar do tema. Muitos falam na “dívida histórica” do Brasil com relação aos casos de desaparecimento, que se destaca pela falta de um banco de dados concreto, bem como de protocolos definidos que são fundamentais para localizar pessoas nas horas iniciais de seu desaparecimento.
Um terço dos desaparecidos são crianças e adolescentes
Publicado em 2023, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 registrou 74.061 pessoas desaparecidas no Brasil.
Do total de registros, 46,7% se concentram na região Sudeste, em muito puxados pelo estado de São Paulo, que registrou 20.411 ocorrências. Em seguida a região Sul, com 22,3% do total, cujo destaque é o Rio Grande do Sul, em que os registros alcançaram a marca de 6.888 ocorrências. A região Nordeste, por sua vez, concentrou 14,8% do total, seguida pelas regiões Centro-Oeste e Norte, que concentraram 9,7% e 6,5%, respectivamente.
Sendo uma fonte de prestígio quando se fala Segurança Pública no Brasil, o Anuário em edições anteriores já destacou algo revelador: “Estimar o número de pessoas que desaparecem anualmente segue sendo um desafio no Brasil, dado que o Estado não publica estatísticas periódicas sobre o tema. Embora a lei que cria o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas já tenha mais de três anos, até hoje o site do Ministério da Justiça informa que o sistema “está em construção”.
Desta forma, não é possível ter uma visão definitiva e sistêmica sobre casos de desaparecimento de pessoas no Brasil, e, tratando-se do tema desta reportagem, os casos que são ligados a menores crianças e adolescentes.
Diante da falta de uma iniciativa capitaneada pelo ente federal, os estados têm estabelecido programas, protocolos e legislações próprias para lidar com os desafios associados a este tema.
Uma medida que ganhou maior alcance, sendo destaque no Anuário de 2022 e replicada em outras unidades federativas é o Programa de Localização de Identificação de Desaparecidos (PLID), originário do Rio de Janeiro.
Criado em 2012, este programa já foi adotado por alguns estados como São Paulo, Ceará, Pará, Santa Catarina, Goiás e Amazonas. O PLID visa integrar dados de diferentes setores, como segurança, saúde e assistência social, facilitando a localização de pessoas desaparecidas.
Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos (Sinalid)
O Programa citado acima contribui para a formação do Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos (Sinalid), que foi instituído pelo Conselho Nacional do Ministério Público em 2017 e que hoje opera com uma base de dados de pessoas desaparecidas, porém não é um centro de informações completo.
Divergindo em relação aos dados contidos no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Sinalid informou 84,9 mil pessoas desaparecidas no país em 2022, sendo 30.000 na faixa etária de crianças e adolescentes (0 a 17 anos).
Para resolver a crescente epidemia de desaparecimentos e aumentar a taxa de resolução dos casos, o Governo Federal busca estabelecer uma base de dados unificada. Esta base utilizará a tecnologia e os registros já presentes no Sinalid, tido hoje como o maior sistema de enfrentamento ao desaparecimento no Brasil.
No entanto, a resolução do problema de desaparecimento envolve também a compreensão e o enfrentamento das causas profundas que levam a essas situações.
Fatores como a desigualdade social, a violência doméstica, a exploração sexual e o tráfico de pessoas são exemplos de questões que devem ser combatidas, para que o Brasil possa ver uma redução significativa nos casos.
O gráfico abaixo contido no Anuário de 2021 reflete a taxa de desaparecimento a cada 100 mil habitantes no Brasil. O documento destaca que, embora esse número elevado demonstre que o desaparecimento é uma questão de urgência, a diferença das taxas entre os estados reflete sobre a forma como são feitos estes registros.
Os índices de mortes violentas, segundo o Anuário, podem ser considerados proporcionais e correlacionados com casos de pessoas desaparecidas. Sendo assim, estados como o Amapá (que registrou aumento de 19% em crimes contra a vida no ano de 2021) e que registrou baixa taxa de pessoas desaparecidas, podem acabar indicando um cenário de subnotificações, o que aliás, é uma situação que ocorre em praticamente todo o Brasil.
Associações tornam-se referência na busca por desaparecidos
Existem no Brasil entidades que atuam em casos de desaparecimentos, sejam de adultos ou crianças. Como grande expoente deste meio, a Associação Desaparecidos do Brasil, criada em 1997, atua no combate ao tráfico humano e desaparecimento de pessoas.
Hoje, com uma rede de voluntários em constante crescimento, a organização estima que entre 15% e 20% dos casos de desaparecimento registrados em sua plataforma são oriundos do tráfico humano, conforme informações disponibilizadas em seu website.
Entre as missões de êxito destacadas pela Associação, está o trabalho conjunto com a Polícia Federal para garantir a inclusão de crianças e adolescentes no Alerta Amarelo da Interpol, uma ação anteriormente inacessível.
Frentes de trabalho realizadas pela Associação:
• Cadastro e busca de desaparecidos;
• Busca por apoio político e jurídico às vítimas do tráfico de pessoas e demais desaparecidos;
• Campanhas de prevenção ao desaparecimento;
• Apoio às famílias cadastradas;
• Confecção de cartazes, camisetas, faixas e banners;
• Ampla divulgação na Rede e na mídia escrita e falada;
• Pesquisas aprofundadas quando necessário;
• Busca por novos parceiros na divulgação;
• Ampliação constante da grande família de voluntários e ajudadores, entre outros.
Conheça aqui mais detalhes da incrível história da Associação Desaparecidos do Brasil e sua fundadora, Amanda Boldeck.
Centralização das informações e uso de tecnologias
Um problema recorrente neste universo é a divergência de dados contidos em bancos de informação distintos. A exemplo do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que traz uma abordagem diferente das informações contidas no Sistema Nacional de Localização e Identificação de Desaparecidos (Sinalid).
A Associação Desaparecidos do Brasil, por sua vez, propõe a criação de um Banco de Dados Nacional de Desaparecidos, atualizado constantemente, em conjunto com um Banco de Dados de DNA para identificação de crianças.
A Associação aponta que com o passar dos anos as feições se alteram, tornando o reconhecimento físico cada vez mais difícil.
Diante dessa situação, as tecnologias de envelhecimento de imagens têm se mostrado uma ferramenta eficaz na localização de pessoas desaparecidas. Esses avanços tecnológicos utilizam técnicas de aprendizado para simular o envelhecimento facial, permitindo que fotos antigas sejam atualizadas e mostrando como uma pessoa possivelmente se pareceria no presente.
Existem vários programas capazes de realizar o envelhecimento. Alguns exemplos incluem:
• FaceApp: aplicativo que oferece recursos de envelhecimento facial, permitindo que os usuários vejam como eles ou outras pessoas podem parecer no futuro. Embora não seja especificamente voltado para a localização de desaparecidos, seu recurso de imagens pode ser útil para criar representações aproximadas.
• Age Progression Software: especializado em progressão de idade de pessoas desaparecidas. Esse programa utiliza técnicas de aprendizado de máquina e algoritmos avançados para criar imagens realistas e atualizadas de indivíduos com base em fotos mais antigas.
No Tocantins, Palmas e Araguaína lideram casos de desaparecidos
Um levantamento com dados sobre casos de crianças e adolescentes desaparecidos no Tocantins foi divulgado pela Secretaria de Segurança Pública, a pedido desta reportagem.
De acordo com o Governo do Estado, entre os anos de 2018 e 2022, foram registrados em delegacias do Tocantins, um total de 26 casos de menores entre 0 e 11 anos e outros 273 casos com jovens de 12 e 17 anos.
A capital Palmas lidera com 43 casos – entre meninos e meninas de 0 a 17 anos, seguida por Araguaína com 37 registros, também na mesma faixa etária e gêneros.
Tanto a nível nacional como estadual, a maioria dos casos de pessoas (menores ou adultos) que desaparecem acabam retornando ou são encontradas. Essa questão é tratada no Anuário, indicando os diversos fatores que podem fazer uma pessoa sumir.
“O desaparecimento de uma pessoa, como comentado, pode ser multicausal. Além da possibilidade de ser voluntário, em algumas circunstâncias, pode ser resultado de falhas de proteção de pessoas em situação vulnerável, como pessoas com alguma doença, transtorno mental ou senilidade, que frequentemente tornam o paradeiro de idosos desconhecido; também pode se relacionar com algum desastre”, conforme consta no documento.
Ainda de acordo com a Secretaria de Segurança Pública do Tocantins (SSP), existem dois casos abertos de crianças desaparecidas no estado. Ambos ocorreram em Palmas-TO nos anos de 2016 e 2021, tratando-se de Laura Vitória Oliveira da Rocha (09 anos) e Saphira Ferreira Lima (10 anos), respectivamente.
Outros dois casos envolvendo adolescentes desaparecidos também estão ativos. Tratam-se de Mateus Pinheiro da Silva, desaparecido desde o dia 8 de outubro de 2021, na região norte de Palmas; e de Carla Caroline Almeida Ribeiro Neves, desaparecida desde o dia 5 de julho de 2012, na cidade de Porto Nacional.
Mateus tinha 17 anos na época do fato e o caso também é investigado pela Polinter. Já a investigação de Carla Caroline, que tinha 14 anos à época, está sob a responsabilidade da 7ª Divisão Especializada de Repressão ao Crime Organizado (7ª DEIC - Porto Nacional).
MPTO lança cartilha para auxiliar em casos de desaparecimento
Em abril de 2023, o Ministério Público do Tocantins (MPTO) disponibilizou uma cartilha direcionada para auxiliar na busca por pessoas desaparecidas. Este guia é uma iniciativa do órgão para avançar com a implantação do Programa de Localização e Identificação de Pessoas Desaparecidas no Tocantins.
O conteúdo é destinado a funcionários públicos, agentes da lei, membros de ONGs e outros profissionais que se deparam com a questão do desaparecimento de pessoas.
Para complementar a utilidade do material, foi elaborado também um pôster demonstrando o processo que as instituições públicas devem seguir ao lidar com casos de pessoas desaparecidas.
Este material está sendo distribuído em todo o estado, através do MPTO, em trabalho coordenado pela promotora Isabelle Figueiredo, que está à frente do tema no Estado.
A promotora destacou à imprensa, na época de lançamento da cartilha, que, apesar do elevado número de desaparecidos, a maioria dos casos é solucionada. Isabelle destacou ainda que o propósito do material é auxiliar no combate ao desaparecimento de pessoas no Tocantins, por meio de uma abordagem integrada.
Em entrevista para esta reportagem em outubro de 2023, a promotora Isabelle Figueireiro, que atua no MPTO há quase 10 anos, comentou sobre os casos de desaparecimento no Tocantins.
"Não temos uma delegacia especialziada aqui no Estado, o que de fato dificulta as investigações com relação a desaparecimento. Hoje essa questão é tratada na POLINTER, que tem outras atribuições com muitas demandas próprias. E no interior do Estado, essa questão é ainda mais delicada, devido a falta de efetivo e estrutura.", comentou.
O Sinalid, conforme esclarecido no início desta seção, é o sistema nacional que reúne informações sobre pessoas desaparecidas. No Tocantins, ainda existe o desafio de orientar as forças de segurança pública a cadastrarem os registros de desaparecimentos dentro deste sistema.
"Existe um sistema da polícia civil tocantinense, porém as informações não são cruzadas com outros sistemas nacionais e estaduais. Por isso, é pouco usado. No interior, por exemplo, o agente registra o boletim de ocorrencia no sistema, mas não lança esses dados dentro do Sinalid. Fizemos uma cartilha com orientações para cada um desses agentes usarem e cadastrarem as informações de forma correta".
No Tocantins, a promotora Isabelle é quem está à frente do processo de implantação do PLID estadual, com uma agenda de trabalho que busca formar processos e parcerias institucionais entre diversos órgãos estaduais.
Outros casos de desaparecimento
A última seção desta reportagem chama-se “Já é hora de voltar” e reúne outros casos de desaparecimento de crianças que ainda estão abertos, e que merecem a devida atenção por parte das autoridades, tanto quanto o caso Laura.
De forma resumida, a seção aborda os casos de Saphira Ferreira (raptada em 2021 com 10 anos de idade em Palmas-TO), Sérgio Leonardo (sequestrado em Porto Nacional-TO no ano de 1987, com apenas 1 ano e oito meses de idade) e também o mundialmente conhecido caso de Madeleine Mccann, de 2003, e que caminha para uma possível conclusão em 2023.
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